Conto de Ambientação 03


Assim como já havia sido versado previamente, se tiver de ser necessário classificar o Albatroz, seria um navio cargueiro; às vezes, no entanto, ele não transporta apenas carga, mas clientes também.
(Embora frequentemente os clientes sejam considerados "carga", conforme a quantia paga)
 Esses tais clientes são, por sua maioria, pessoas que causaram alguma atribulação e agora necessitam exilar-se, ou, se não for o caso, pessoas que necessitam imigrar ilegalmente; no pior dos casos, até mesmo há pessoas cuja escolha mais sensata seria não pisarem mais em terra firme e tornarem-se marinheiros do Albatroz.
 Mas até mesmo essas pessoas, sitiadas por essas inevitáveis situações, só optaram pelo navio sem classificação, Albatroz, pois não havia outra opção; entre elas, no entanto, há uma excêntrica, ou melhor, corajosa, ou melhor, tola, que embarca por vontade própria e até se atreve, em meio aos perigos, a ser clandestina. Ela, contudo, insiste resoluta: "Eu nunca que queria entrar num navio desses, que mais parece o inferno do mar."; com porfia, ela alega coincidência, mas já realizou o ato de se esgueirar às ocultas tantas vezes que a quantidade de ocorrências se tornou incerta, logo não convencia mais ninguém.
 Essa clandestina é uma garota de belíssimo perfil, mas para os marinheiros é uma garota malquista e indesejada; ninguém sabe seu nome, tampouco buscam sabê-lo; só a nomeiam como clandestina, praticam intensos castigos toda vez que a encontram e, no fim, sem se importarem se é no porto ou em alto mar, literalmente expelem a garota do navio.
 Todavia, ela sobrevive encardidamente toda vez, e mesmo podendo desistir, a garota opta pela clandestinidade. Versemos sobre uma certa história desta clandestina e de um marinheiro do Albatroz...

―――Um maravilhoso momento da clandestina―――
 
Ali era o chamado bastidor secreto, secreto interior do navio ou secreto depósito; de qualquer forma, era um lugar do Albatroz que pessoas não frequentavam, um recanto discreto.
♪Ei~ Ó tartaruga~ Ó~ tar~ta~ru~ga~san~¹
Só de ouvir, o canto que está ressoando me deixa com uma sensação pura no coração, como se estivesse no amanhecer num presbitério ou dentro de um tempo xintoísta enquanto recebo o sol pela manhã. Vestindo batas brancas, semelhantes a uma capa, estavam alinhados os marinheiros do Albatroz, cantando como se fossem um coral.
 Quem está manuseando a batuta é um marinheiro habilidoso em música cuja aparência é tão digna que, só de vê-lo, também sinto vontade de endireitar minha postura.
 O marinheiro maestro aguça seus ouvidos para ouvir a fluidez da música e conduz o som de seus colegas do coro, desejando que se torne elegante como o correr das águas de um riacho.
 
♪Não~ há~ ninguém~ no~ nosso~ mundo~
 
 Atrás do coro, os enfileirados marinheiros compõem a orquestra. Os instrumentos que esses músicos tocam emitem um brilho como o de um produto nupérrimo, mas ao mesmo tempo liberam uma luz deslumbrante reservada apenas aos que já atravessaram séculos de uso; assemelham-se a itens mágicos. Não, não é exagero dizer que são itens mágicos. Quando a melodia da orquestra, as notas dos instrumentos e as vozes do coral se encontram, elas se juntam e se enriquecem, formando a mais divina harmonia.

 ♪Tão~ lenta~ como~ você~

 E então, na frente deles — do coral e dos marinheiros ―――
 Só de ver daqui, é como se o interior de meu coração estivesse sendo vorazmente dissipado e em minhas orelhas fremissem risadas como as dos demônios do inferno; estava ali, posicionada numa tenebrosa, impiedosa mesa de crucificação em formato de Y, uma virgem de pele de alabastro e cabelos glaucos, exposta, despida sem sobrar nem ao menos uma meia, manietada pelos pulsos, suspensa de costas ― é a rotineira clandestina do Albatroz.
 À frente desta clandestina estão as 1º oficiais do Albatroz, Shisamu & Kisara. Elas, também, estão cantando e, em sincronia com o coral e a orquestra, roçam as penas de pavão que têm em ambas as mãos, fazendo cócegas pelas costas, axilas e barriga da clandestina.
"Ahahahahahaha, p-pare, pareeeeem~~~ Ahahahaha!"

 A clandestina ri loucamente por causa da indizível cócega que as penas do pavão lhe causam.
 
♪Por que~ ela~ é~ tão~ lenta~ assim~
 
O marinheiro maestro move sua batuta para a direita.
 Ao movê-la, a Shisamu-san, enquanto canta, move a pena do pavão tateando a axila da clandestina; isso era, de fato, um movimento sutil, mas pertinazmente insistente.

"Kyaa~ Hahahahaha, haha, aha, cof, me per... perdoa... Ahahaha, A-a-ah~~~"
 
A batuta é movida para a esquerda. Ao movê-la, como já era de se esperar, a Kisara-san, enquanto canta, desliza a pena do pavão sob os seios da clandestina. Um movimento em espiral torto é traçado, e algo similar a uma risada terminal consoa.
 
"Cof, hahahaha, cof, cof, hah~ ha, me... sal... vem, não... consigo... res... pi... rar... dói..."
 
Essas séries de movimentos, todo esse processo, vêm repetindo-se de maneira bela, solene, divina, como se fossem um ritual que, iterado solenemente por milênios, ascendera até o limite do inviolável.
 Para começo de conversa, esse "Ei, ó tartaruga" é uma historinha com vasta área de uso por causa de seu ritmo: quando temos que fazer, por exemplo, os cambaleantes bêbados andarem, pois seus passos ébrios se assemelham muito com a melodia desta música, ou quando temos que fritar ovo ou arroz — ao sincronizar o balançar da frigideira com o ritmo, obtemos um resultado na medida certa. Logo, essa música é ideal também para estabelecer o ritmo da alternante carícia das duas penas de pavão. Provavelmente é apropriada para qualquer trabalho reiterativo.
 Bem, como a Shisamu-san e a Kisara-san são gêmeas que possuem sincronia perfeita, provavelmente mesmo sem a música não teriam problemas, mas uma coisa não tem a ver com a outra: para tudo existem o tempo e lugar certos.
 Eventualmente acaba uma estrofe da música, o marinheiro maestro para sua batuta, ergue elegantemente sua outra mão, apertando seu punho e retendo, assim, toda melodia do coro e da orquestra. Ainda enquanto remanescia nos arredores o ecoar do profundo lirismo, o marinheiro maestro virou-se para a Shisamu-san e para a Kisara-san.
 
"Foi-lhes de agrado, oficiais?"
"Hum, não foi nem um pouco suficiente, ao menos para essa garota."
 
 Após a indiferente resposta da Kisara-san, a clandestina abriu seus olhos quase como se tivessem sido rasgados, torceu seu pescoço e virou-se. Seu preto cabelo desmancha-se, deslizando por suas costas. O contraste entre o branco e o preto é de notável beleza, mas para a clandestina, que teve sua pele completamente açoitada pelas cócegas, apenas isso já causa uma triste estimulação; contorcendo-se de agonia, queixou-se emotiva:
 
 "Ei... você faz isso com a minha pessoa e ainda assim... o que você quer dizer com esse 'não foi nem um pouco suficiente'..."
 
Ao ouvir isso, a Shisamu-san alisou as costas da clandestina com a pena de pavão gentilmente, como se fosse a neve deslizando sobre o vidro de uma janela, contudo com um manuseio provocativamente malicioso; enquanto crava, novamente, as cócegas na clandestina, responde friamente:
 
"O que eu queria dizer? Você entra no navio, rouba as bebidas, e acha que vai acabar por isso mesmo?"

"Ahii, ahiii... M-Mas era só uma garrafa, só metade da garrafa! E também, era Kirsch, eu amo cereja, eu queria de todo jeito... Arrg!?"
"Ela disse 'mas'. Ela disse 'só' metade da garrafa.
 Bem, se fosse uma companheira da tripulação, eu até deixaria passar, mas pra começar você―――"

 Desta vez a Shisamu-san deslizou a ponta da pena entre os exuberantes e formosos, quase que pêssegos brancos, glúteos da clandestina; após atribuir ainda mais angústia, fazendo com que o corpo da clandestina se contorcesse, ela continua a fala cortada de sua irmã gêmea:
 
"É uma clandestina! Entrou de graça! É que nem os desgraçados que compram prostitutas, comem o tanto quanto podem e, no fim, dão no pé sem pagar nada!"

"Ela ainda põe a mão nas cargas... e quer reclamar?"

"Para começo de história, estamos fazendo tudo isso, gastando nosso tempo e esforço, porque você disse que não suportava mais ser amarrada, ser pendurada, que não queria mais nada que doesse."
Após dizer bruscamente, ela manda um sinal para os marinheiros, assim recomeçando a música e o canto. Entendo, de fato, não é uma punição que proporciona dor diretamente, mas me pergunto qual o porquê da preferência por esses canto e música. Porém, não se deve fazer perguntas como essa, e pode-se dizer que se eu me preocupar com isso, é o fim.
 O canto prossegue calmamente e a melodia prossegue vividamente.
♪Mas~ o que~ falas~ coelho~san~
 
E então os ataques da Shisamu-san e da Kisara-san ficam mais obscuros e cruéis ao extremo, e a clandestina geme como se fosse uma lebre sem pele na qual estivessem esfregando sal; seu cabelo preto mel desarranja-se, arrebatando-se nas suas costas, que não tinham nenhuma mancha ou sujeira; continuavam, sem parar, a extrair dela um som que não conseguia ser distinguido entre um grito e uma risada.
"Kya... kahaa...! Hiii, ahaha, aha, ehahahah... pa...paree...e..."

 Sua face já estava distorcida, semelhante à de um idiota; essa menina, antes, era delicada, sagaz e esbelta — considerando somente sua aparência e sua face, não seria exagero dizer que é de beleza inigualável —; no entanto, a diferença entre sua bonita aparência habitual e a de agora é tamanha que sinto até que sua atual forma é uma blasfêmia a todas as coisas nobres deste mundo.

"Aha... kahaha...huff...puff..."
Sua fina garganta se curvou até o limite, deixando escapar um som semelhante ao vento uivando no inverno.
 
♪Se~ for~ assim~ vamos~ competir~
 
"Huh... cof..."
 
Seus lindos olhos verdes escuros, que têm o mesmo tom de seu cabelo, voltam-se para trás, tornando-se brancos, e tornam-se embaçados; ela fica a ponto de desmaiar. Mesmo assim, não importa o quanto ela gema, suas confinadas mãos não são liberadas, tornando impossível sua liberdade. A propósito, as algemas que a prendiam são devidamente forradas por um suave tecido, foram feitas assim para não trazer dor ao esfregar; ao que parece, as duas gêmeas cumprem suas promessas com vigor.
 Para começo de conversa, mesmo que este tipo de punição com cócegas aparente ser algo cômico, é uma tortura cruel; antigamente, era bastante usado na parte Oooku² do palácio, quando não se podia bater, chutar ou deixar ferimentos; diz-se que várias mulheres chegaram a morrer de agonia devido a esse método. E assim, ao ver a angústia da clandestina nesse persistente processo, só de imaginar o que ela está sentindo, até eu começo a ficar louco.
 Então, no exato momento em que a clandestina, de certa forma, ia desmaiar em meio à felicidade, ambas as gêmeas cessaram seus ataques.
 Conforme a consciência da clandestina é gradativamente recuperada, as penas de pavão voltam-se a dobrar; deixam-na descansar por um ínfimo momento após a encurralarem quase até o desmaio, mas puxam-na de volta para cá — a sincronia dessas gêmeas é de se admirar.
 Já começaram a pingar as lágrimas da clandestina, e sua respiração tornou-se ofegante; ela, então, volta-se para as gêmeas de alguma forma e, tristemente, cicia algo; todavia, sua voz estava tão rouca, sua respiração tão tênue, que não foi possível discernir se estava suplicando ou não. Quando as duas aproximaram seus ouvidos:
 
"... Seus demônios... desumanas... gatas de rua... selvagens... encardidas..."
Bem, o que devo dizer; a clandestina, depois de passar por tudo isso, ao invés de demandar que as duas a soltem, ela enfileirou insultos.
 A Shisamu-san e a Kisara-san trocam olhares e acenam com a cabeça, e suas faces idênticas da esquerda à direita sorriem glamourosamente. Porém, em suas têmporas uma assustadora veia urge, a ponta de seus lábios se contrai pulsando. Ambas, estalando seus dedos, chamam os marinheiros.
"Ei, marinheiro, se não estou enganada, ainda sobraram inhames, não é? Raspe-os todos e traga-os para cá."
Não se sabe o que ela imaginou, mas, ouvindo essas palavras da Shisamu-san, a clandestina, que até agora estava com os olhos corajosos e firmes, fez um "Hii!", espreitando suas pálpebras pavidamente.
 A propósito, no inhame há a substância "oxalato de cálcio", composto adstringente presente próximo à casca, um delicado componente cristalino acicular. Ao descascá-lo e raspá-lo, sua composição se quebra, e, em contato com a pele, o acicular cristal de hidróxido de sódio causa formigamento, que vem a se tornar prurido; em suma, é como se inúmeras agulhas estivessem cutucando o indivíduo, e quanto mais for coçado ou esfregado, mais a dor e coceira aumentam; se porventura for colocado em alguma parte genital, será o fim.

"Então, marinheiro, traga-me todas as restantes garrafas de água gaseificada, e também um pouco de álcool para desinfecção. Por fim, também traga uma seringa de um litro."

 Não se sabe o que ela imaginou, mas, ouvindo essas palavras da Kisara-san, a clandestina, que até agora estava com a boca cerrada e firme, fez um "Nãão!", tremendo pavorosamente.
 A propósito, o dióxido de carbono causa uma tépida agonia por causa de suas características espumantes ocasionadoras de estímulos e fermentações, tal como no leite e na glicerina; pelo que sei, evita-se o uso caso você não seja um ilustre veterano no assunto. Se porventura for misturado junto ao álcool, será o fim.
E então a clandestina, tentando escapar do plano da Shisamu-san e da Kisara-san, sacode seu lindo corpo nu e seus membros, mas não havia como isso a libertar da mesa de crucificação―――
 
 
―――Ali era o chamado bastidor secreto, secreto interior do navio ou secreto depósito; de qualquer forma, era um lugar do Albatroz que pessoas não frequentavam, um recanto discreto. Desse lugar vazavam os gritos da clandestina e as gargalhadas das 1º oficiais, e o canto do coral e a orquestra, sem saber quando parariam sua música, continuaram a tocar por um longo, longo período de tempo.

 
Notas:
¹Música infantil baseada na fábula de Esopo "A Lebre e a Tartaruga"
²Oooku: área de harém dos palácios de Edo

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