Conto de Ambientação 02

 
 
Albatroz, navio sem classificação, objeto chistoso que voga no oceano, incurial ser do mar¹. Não apenas o próprio navio já causa extremo repúdio por sua aparência, mas a tripulação também é infame por sua excentricidade e sua malícia; dizem que, quando chega a algum porto, quem o conhece sabe que é inútil tentar impedir o tumulto que o acompanha.
 Porém, dentre esses tripulantes, há uma de aparência frágil e débil, uma que, mesmo no meio da atroz tripulação, se avulta por sua discrepância, uma albina, uma garota chamada Kuro.
 O próprio fato de que esta garota, que se assemelha a uma planta fantasma na penumbra, consegue conviver dentro do Albatroz já é algo espantoso, mas além disso ela também é considerada dentro do navio como capitã. É bravamente conhecida como a "Capitã que chama a tempestade", pois parece que durante tempestades ela demostra seu divino trabalho.
 Vamos observar um certo dia desta particular garota que se destaca mesmo entre os tripulantes...


―――Um dia bucólico da capitã Kuro―――

- Dia X/ Mês X; Velocidade do vento: 2 nós; Céu pouco nublado; Pequenas ondas.
 Consegui acordar hoje pela manhã também. Penso ser bom conseguir me despertar pela manhã. Meus companheiros não devem ficar se preocupando com dormir e depois não conseguir acordar. Que inveja.
 Meu cabelo estava enrolado, tentei arrumar, mas ficou ainda mais enrolado. Depois vou pedir para algum marinheiro arrumar ele.
 Troco minha roupa. Lavei minha calcinha ontem, por isso hoje está limpa. Ainda não secou, está molhada, mas vou vestir, não tenho outra. Estou com frio no estômago, fico com vontade de ir logo ao banheiro.
 Antes de dormir, ontem à noite, o engenheiro-chefe me contou uma história assustadora e eu não consegui ir ao banheiro, por isso agora quero muito ir.
 Corro até o banheiro. No meio do caminho bati e cambaleei várias vezes, mas aguentei. Aguentei, mas o contramestre estava usando. Bati bastante na porta e supliquei para poder entrar, mas ele gritou comigo, dizendo:
"Sua idiota, ontem à noite comi ovo cozido e tá um problemão. Procure outro, outro."
 Mas eu também estou com um problemão. Um maior ainda. Segurei demais e agora começou a doer. Me sinto mal. Não vou aguentar até... chegar em outro banheiro. Mas se eu fizer nas calças, vão se irritar comigo, não tenho outra roupa também.
 Então comecei a pensar. Com tudo que podia. Pensei. Por isso decidi ir à "caixa da capitã", que estava próxima.
 É estreita, fedorenta e escura, mas tem um penico. Se eu andasse mais um pouco, poderia vazar, mas consegui.
 Ah, ah, que gostoso~...
"Ei, vocês aí, marinheiros, me deem uma força aqui."
"Quê? Sakuya-san, como pode ver, estamos carregando o lastro, não vai dar..."
 Hm? Mas o quê? É o Sakuya-san e os marinheiros.
 Parece que estão do lado de fora da "caixa".
"Relaxa, relaxa. Deixa isso aí um pouco. Não consigo separar as cargas sozinho. Depois dou duas laranjas que ainda não murcharam pra cada um. O que acham?"
"Hum... Não tem outro jeito. Mas não podemos ficar muito tempo."
"Sim, se vocês ajudarem, acaba logo."
 Hã? O que foi esse barulho? Eh... Sakuya-san. Marinheiro-san. Eu estou aqui, viu. Estou aqui.
 Mesmo batendo por dentro, não obtenho resposta. Começo a ficar preocupada, empurro a tampa. Não abriu. Não abre. Boto mais força. Não se mexe nem um pouco. Tem algo em cima da tampa. Não consigo mover.
 Eh?... Eh?...  Eu estou aqui. Não se vão. Não se vããããooo.
 Bato, bato. Mas não abre. Tento empurrar com tudo. Não abre.
 Não abre, não abre, tirem. Me tirem daqui. Está fedorento. Ah. O penico virou agora. Está ainda mais fedorento. Mas ainda não abre. Está escuro, desconfortável, meu sapato começou a melar com xixi. Que nojo, começo a me sentir mal, algo parece estar subindo pela minha garganta.
 Blerrrggg...
 Ge-...bleerrrrrrrgeeeeee...
 Uh, urggggg...
 Hah... Hah...
 Eu vomitei. Não sei, porque está escuro, mas vomitei muito. Melei também meu sapato. Mesmo assim não me tiram. Está malcheiroso, tenebroso, minha cabeça está...

 Hoje estou descalça. Porque lavei meu sapato ontem e está secando. Embaixo da minha calça também não estou vestindo nada. Enquanto eu estava desmaiada, eh... o Sakuya-san riu, dizendo que foi sorte minha ainda ter água limpa.
 Sakuya-san é uma boa pessoa. Ele me tirou de lá. Também me ajudou a lavar a calcinha e os sapatos. Eh?... Falando nisso, por que que eu fui trancada mesmo?
 Às vezes eu fico distraída. dá um branco na cabeç
 
 Antes que percebesse, minha face estava salgada. Borbulhando dentro do prato de sopa. Eh, por que eu?... Sim, isso. Eu estava comendo meu almoço. Eh? Era... sopa de ervilha com bacon. Não gosto de ervilhas, enquanto estava tirando elas comecei a ficar com sono. Por que sinto um friozinho nos meus pés? Ah, é. Porque lavei eles depois de melar com mijo e vômito. Me lembrei. Talvez eu seja sábia. Odeio ervilhas, tenho que tirar elas. Mas por que minha face está grudenta com sopa e até meu cabelo também? A Shisamu-san, fazendo uma cara meio brava, me tirou de lá. Ainda estava no meio da refeição, mesmo assim me tirou de lá.
"Sorte que ainda tinha água limpa, mas tente não dormir enquanto come, Kuro. Ok?"
 Sinto que alguém me disse algo parecido, achei estranho, ri, e por isso a Shisamu-san me fez cócegas. Não dói mais do que baterem em mim, mas sinto cócegas quando fazem cócegas, falta ar; eu... só um pouco, só um pouquinho, viu? Chorei. Porque mijei um pouco também.
 
Depois do almoço, é hora de trabalhar. Hoje o tempo está bom, por isso vou colocar para secar a lula que os marinheiros pegaram ontem. Souemon-san veio ver, mas gatos não comem lulas. Mesmo não conseguindo comer, ficou todo o tempo ao meu lado. Os ratos que apareciam de repente, ele avançava com um impulso incrível e os pegava — incrível. Achei incrível, então fui agradecer ao Souemon-san, mas o contramestre, que estava passando, me bateu e disse:
"Kuro, consiga ao menos ficar de olho na lula até secar. Se não fosse o Souemon, não se sabe quantos ratos já teriam levado..."
 Ah. Pensando bem, é mesmo. O galo está bem redondo. Quero mostrar para o Sakuya-san. Ao dizer isso para o contramestre, desta vez ele bateu no meu bumbum, ai.
 
 No jantar me proibiram de comer. O contramestre se irritou e proibiu. Então, fiquei no meu quarto, sem outra escolha, e enfileirei meus tesouros. Isso me faz esquecer um pouco de antes.
 Ah, ouvi um som lá fora. Ao espiar, era o Souemon-san. Estava com uma bolsa de pão seco em sua boca. O Souemon-san é muito forte e dá medo, mas é muito gentil às vezes. É um gato muito incrível. Como agradecimento dei o mais brilhante de meus tesouros, mas ele rejeitou empurrando com a pata para frente. Será que o Souemon-san não precisa do meu brilhante? Deve ser porque os olhinhos do Souemon-san são mais bonitos que o meu brilhante.
 Porque comi o pão seco sem água alguma, fiquei com a garganta entalada, mesmo tentando engolir não consegui, mesmo batendo meu peito não consegui, está doendo respirar, não... consigo... respir

 Consegui acordar hoje também.
 Penso ser bom conseguir me despertar pela manhã.
 Mas hoje, antes de mais nada, preciso limpar alguns pedaços de pão e o vômito que estão no chão.
─── Enquanto eu estava limpando...
─── Eu fiquei...
─── Um pouco triste...
─── Tem algo de errado comigo?...
─── Quero logo ser igual a todos...
─── Será que a tempestade não vem logo?...
─── Se ela vier...
─── Será que todos vão dizer que sou incrível?...

 PS: Para o Souemon-san:
 O pão seco estava delicioso.
 Estava com fome. Obrigada.
 E, Sakuya-san, da próxima vez que for deixar algo em cima da "caixa", verifica se eu não estou lá dentro.

Notas:
¹Referência ao primeiro livro da série Alan Lewrie, The King's Coat, escrita por Dewey Lambdin.

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